Garrard 401

     Há algo de errado no aviso: "mantenha a distância social"... Resultado da recomendação da Direcção-Geral de Saúde (DGS), esse alerta tem sido debitado em dose massificadora para uniformizar comportamentos com vista a reduzir a transmissão da doença por Covid-19, ganhadora de protagonismo na nossa vida em 2020, transformando -se em objecto de troca de palavras entre nós no corrente ano. Deparando-me diariamente com essa chamada de atenção, num instante a minha caixa idiota instruída (cérebro) fez exercício, elaborando um ensaio de reflexão sobre distanciamento social.

     Ciente que nenhuma palavra é neutra, com conceitos e definições predispostos para comportamentos, o prisma "distanciamento social" poderá sugerir afastamento de classes sociais, étnicas e etárias, gerando mais assimetria entre elas e maior grau de decadência nos relacionamentos, manifesto no desdém pelos mais desfavorecidos e pelo nosso semelhante de idade avançada, faltando o compromisso em tratar-nos uns aos outros com dignidade e consideração, aumentando a percepção de vivência numa sociedade carenciada de credibilidade. A juntar a estas preocupações, o indivíduo terá tendência para fechar-se em si mesmo, deixando de contactar os seus parentes e amigos. Por considerar que este cartaz não é saudável, acarretando sobressaltos comportamentais, cujas cicatrizes demorarão a esvaecer, talvez, mantenha o distanciamento físico seja a expressão adequada e recomendada a adoptar pela DGS.

     Definindo que o sentido da vida está ancorado no amor verdadeiro e na união entre pessoas, neste tempo de convivência com a pandemia, em que os encontros foram abruptamente interrompidos, procuro elevar a dimensão humana e intensificar os laços familiares, contactando parentes por telefone, constituindo as comunicações móveis o meio mais próximo de tudo o que nos faz falta neste momento peculiar: o encontro pela palavra e a cumplicidade. Analgamente, por não colocar a vista em cima de alguns amigos desde o terceiro mês do ano transacto, também os contacto pela mesma via. Esses amigos reais, embora não sejam aos montes por não serem virtuais como a multidão residente numa página de redes sociais disponibilizada na internet, são verdadeiros e desinteressados por não dependerem de circunstâncias.   

       Em Outubro, Francisco Perdigão - individualidade cheia de cor por ser alegre, risonha e bom interlocutor, apreciadora de sabores e de música, que preza as amizades, usando, neste fórum, o cognome Maxmix, que há quinze anos me deu a conhecer o amigo Júlio Marques - quando ultimava a reinvenção de traje das suas meninas falantes, Marantz LS-17A, sugeriu que o meu gira-discos, outrora trabalhado por ele na aparência corporal, fosse alvo de intervenção para adicionar proporção ao prazer do olhar. Por saber que fazer coisas lhe dá um gozo grandioso, não hesitei, aceitando a oferenda e concedendo total liberdade para que a sua criatividade não tivesse amarras. Agendada a ida do plinto para a sua oficina, procedi à desmontagem do Garrard.

       A matriz da sua base de trabalho como artífice, assenta na confluência de tirar proveito dos materiais e das formas. Para levar avante o seu processo criativo na obra de beneficiação ao 401 (denomino "Quatro Centenas e Uma Unidade"), elaborou um caderno de encargos. A primeira tarefa foi extrair a capa do acabamento aplicado na madeira aquando a primeira intervenção realizada há mais de uma dezena de anos, removendo as impurezas da cola com lixa. Depois, forrou o interior das paredes laterais com carpete de cor parda. No passo seguinte, sabendo que teria de ter paciência para trabalhar pequenos pedaços de madeira finos e compridos, desenhando o efeito de espinha no topo do plinto onde a estrutura do gira-discos e o armboard do braço são acomodados, lenta e cuidadosamente listou as ripas; em seguida, fixando-as com a aplicação de forças sobre pregos por intermédio de golpes decididos e seguros dados com martelo, que se assemelharam a pancadas de Molière, decorreu a sessão de polimento e a aplicação da coloração, usando cera em vez de verniz (agradável solução aromatizante do ambiente). O fecho da obra, foi programado com o emprego de quatro placas de acrílico de 3 e 4 mm de espessura, previamente lustradas, correspondentes a:
       - bolha de ar para verificar a horizontalidade;
       - interruptor para ligar/desligar o circuito eléctrico;
       - ficha IEC acolhedora de cabo de corrente;
       - passagem do cabo de interligação do braço.

      A jornada de conceder nova roupagem ao Garrard, decorreu aos fins-de-semana, durante mês e meio. Quando me foi devolvido, contemplei a surpreendente criação e a evidente dimensão artística e humana de um homem magnânimo. Conhecedor do gosto do Chico por blues - em três noites de Novembro de 2016, resultante da programação do saudoso Ruben de Carvalho, acompanhou-me no Ciclo Hootenanny, assistindo às actuações da belgradina Ana Popovic, do estado-unidense Catfish Keith e do portugalês Serushio - assinalei a nova realidade do Quatro Centenas e Uma Unidade, abrindo uma garrafa de Monte dos Amigos (tinto redondense, colheita 2018), acompanhada de enchido do Fundão, queijo de ovelha e pão de centeio, desselando o LP «American Folk Blues Festival`64» (Pure Pleasure / L+R Records, PPAN LR 42.024), referente ao concerto ocorrido a 9 de Outubro, em Hamburgo, que contou com: Howlin`Wolf, John Henry Barbee, Sam Lightning`Hopkins, Sleepy John Estes, Sonny Boy Williamson e Sugar Pie Desanto (nickname de Billy Davis).

     Perante a dádiva que tenho em mãos, em vez de expressar "muito obrigado", declaro gratidão por entender que este agradecimento excede os limites de "obrigado", validando e reconhecendo no Chico o valor que ele tem como amigo e o que faz sem requerer ou reclamar nada em troca. Assim, usando a frase que é solta por outro amigo, o atilado Elienai Baltazar, quando lhe perguntam "como está?", infiro que o entrecho da minha vivência com o Divino, em família e com os amigos, é "melhor do que mereço!"

Excelente reportagem e deixa-me que te diga...

ESTÁ LINDO

Está melhor que mereces de facto, apenas pelo facto de ser impossível estar mais bonito!

Ghost4u escreveu:

...

Perante a dádiva que tenho em mãos, em vez de expressar "muito obrigado", declaro gratidão por entender que este agradecimento excede os limites de "obrigado", validando e reconhecendo no Chico o valor que ele tem como amigo e o que faz sem requerer ou reclamar nada em troca. ... "melhor do que mereço!"...

Bom dia caro Ghost, antes de mais obrigado por essa bela reportagem que fala de amizade e de coisas positivas numa época aonde os sentimentos negativos predominam! Compreendo as razões sentimentais que o levam a proferir a sua ultima frase, permita-me de não estar de acordo pois ... se voçê não merecesse o seu amigo não o teria feito, ném seriam amigos, então essa historia de amizade que teve o G401 como eixo central é perfeitamente normal !...

Agora é consolidadr ainda mais essa bela relação dando muito trabalho a esse ancião, com Blues ou qualquer outra coisa que dê sentido à existência e à nova farda desse veneràvel gira

Bravo pelo texto

Bela história cheia de coisas boas: amizade verdadeira, gira-discos, vinil, vinho e enchidos.. Viva a vida!!

Excelente leitura para a minha manhã de domingo.

Embora o vinilo não tenha reentrado na minha vida, é algo que me faz reviver a forma como a música chegou a mim pela primeira vez.

Excelente reportagem! Bastante completa

Ficou espetacular, qual é braço e célula do gira?

Ghost4u escreveu:

...

Alguns termos, usualmente proferidos e utilisados em condições especificas, não devem ser vistos de maneira literal ... assim, um "prato" de gira discos não é verdadeiramente um "prato de cozinha" ou um "tabuleiro" e não é feito para acolher garrafas de vinho, copos e pires com pão e enchidos ... da mesma maneira que o "tapete" do "prato" não é uma "toalha de mesa" não deve ser utilisado para pousar "pratos" ou para limpar os sapatos ... ném um "prato de cozinha" é feito para acolher um disco vinil que dever ser o unico objecto a ser pousado num "prato" de gira-discos sobre o "tapete" ... de preferência retirando as "capas" do disco!!!

Não conhecia essas skills de artesão ao nosso amigão Maxmix!

Prezado alexandremartins,

O Rega RB900 e a Ortofon Kontrapunkt b fazem parçaria com o Quatro Centenas e Uma Unidade.

Com melhores cumprimentos,

@Ghost4u,
Agradeço as calorosas boas vindas e lhe parabenizo pelas amizades, pelo visto correspondidas, pelo gosto musical e pelo gosto gastronômico!
Espero que esta COVID-19, ao seu final, nos faça valorizar essas boas coisas da vida!
Edmar