Feliz na Praça da Alegria
Terça-feira, a feira da ladra abriu às cinco da madrugada e ao fim da manhã, despede-se, pretendendo regressar Sábado. Os serviços informativos de rádio e televisão anunciam os elementos do governo que toma posse no último dia útil deste mês e que, a qualquer momento, poderá ter os dias contados. Após a jornada laboral, o corpo pede o aconchego do lar, pois a semana ainda situa-se no início do itinerário. Porém, no Hot Club, a estreia de uma intérprete oriunda do outro lado do Atlântico, em território que cada vez mais perde autonomia para uma União Europeia moribunda, é motivo para romper com a rotina.
Com corte de cabelo análogo ao de Sinéad O´Connor nos anos 90, às 22h40,
Andrea dos Guimarães ocupa o palco. Ela própria, faz-se acompanhar no piano e, surpreendentemente, no primeiro tema –
«Desenredo» – a audiência depara-se com uma voz harmoniosa e encantadora, plena de capacidade timbrica e dicção perfeita para embelezar melodias e, por ser isenta de esforço, torna o acto de cantar como se suavemente falasse connosco.
Conjugando ousadia e sofisticação na abordagem a canções assinadas por outros autores, explora uma variedade de preferências, revelando cada música à sua maneira, constituindo uma agradável escapatória às convencionais versões que estamos habituados a escutar. Escrito para um Carnaval na década de 60, entoou o samba
«Lata d´água» sem os ritmos originais, pensando mais na letra do que no ritmo. Graças ao bacharelato em Música Popular, tem o atrevimento de pegar no cancioneiro do interior do Brasil, da denominada música caipira da região do centro dos estados de Minas Gerais (donde é natural, cidade de Tupaciguara) e de Mato Grosso – divulgada com frequência no programa
«Acervo origens», inserido na emissão de
«Raízes», na primeira hora de quarta-feira, na Antena 2 – de forma bem-sucedida e envoltas em elegância, traça de atmosfera intimista as reproduções da composição musical, na qual está patente a sua formação erudita que se cruza com composições tradicionais, como
«Rio de lagrimas». Neste cenário de metamorfosear, está incluso
«Meus tempos de criança», de Ataulfo Alves, uma canção dos anos 40, que ouve
"desde a infância com o pai cantando nas festas de família", o qual, sem ser cantor ou músico profissional, canta o tema no álbum
«Desvelo» – primeiro trabalho a solo da filha que serve de guia às actuações de Andrea nas restantes duas datas de Outubro, agendadas no nosso país; a saber:
-
Dia 30, Salão Brazil, Coimbra;
-
Dia 31, na Musibéria, Serpa.
O vasto leque de competências adquiridas no estudo de piano clássico ainda em criança, conferem ênfase à música simultaneamente simples e complexa em arranjos, saliente em
«Morena de endoidecer» (Djavan), tocando no piano o que um violoncelista executaria.
Além de abordar os clássicos
«Retrato em branco e preto» (arranjo iniciado em 1998 durante os estudos de contraponto em Música Erudita),
«Começar de novo» (Ivan Lins),
«Ela desatinou» (Chico Buarque),
«Asa branca» (Luiz Gonzaga),
«Dindi» (Tom Jobim) e
«Acontece» (Cartola), partilhou canções de sua autoria.
«Ciranda dos meninos», dedicado ao grupo Garimpo (do qual fez parte), escreveu o trecho musical antes dos versos e o inverso aconteceu em
«Água».
Ainda que tenha iniciado a actuação denotando nervoso miudinho, venceu-o com a comunicação pausada e frequentemente estabelecida com o público, constituído, também, por “camones”, dando-se a conhecer e explicando como surgiram os arranjos e o porquê de
«Carmelita» (
"senhora que carregava um saco nas costas com algo que apanhara na rua. As mães diziam às crianças para lhes obedecerem, porque senão vinha a Carmelita e… Carmelita, nada tinha de maldade. Tão-somente era uma pessoa simples"). A interpretação do tema foi realizada sobre um lindo fraseado no piano.
O concerto findou com a vigésima segunda música –
«Cocoon», original de Björk (compositora que muito aprecia), traduzida para
«Casulo», na qual Andrea, depois de se revelar, fecha-se novamente na sua vida para além da música – soou como um tema de embalar, inspirando o público para uma boa noite de descanso.
Usando o último verso de
«Meus tempos de criança»,
"Eu era feliz e não sabia", Andrea dos Guimarães foi feliz na Praça da Alegria.
Texto com a antiga grafia: Ghost4u