Toquinho no Tivoli (2019, reportagem)

        Desde os anos 50 que existem ideias de construir uma máquina, que permita ao utilizador recuar no tempo. Essa máquina de tamanho limitado, possibilitaria que os passageiros fossem acomodados para viajar por toda a extensão longitudinal de uma circunferência, por entre o espaço e o tempo, regressando aos próprios passados do indivíduo. Quem estivesse de fora a observar, conseguiria ver os ponteiros do relógio situado no topo da entrada da máquina, se movimentando de forma irregular, primeiro rodando no sentido correcto e, seguidamente, no sentido oposto, em sintonia com a fase da viagem em que nos achássemos num dado momento. A construção de tal modelo de máquina do tempo carece de ser exequível e é improvável, pois se a máquina ao fazer marcha-atrás no espaço temporal, caísse dentro de um buraco negro, supostamente algo correria mal.

       Graças ao disco rígido incluso na nossa Caixa Idiota Instruída (cérebro), literalmente é possível viajar no tempo com os pés bem assentes na terra. Com pouco mais de sete décadas de existência e 50 anos de carreira, Toquinho detém saudável memória para outorgar veracidade a tal afirmação.

        Na segunda data agendada para o Teatro Tivoli, em Lisboa, Toquinho entrou no palco tocando violão, iniciando a actuação com «Samba de Orly», composto em parceria com Chico Buarque, aquando o encontro com o seu concidadão exilado em Itália, por causa da ditadura militar vivida no Brasil. Quando Vinicius de Moraes tomou conhecimento do regresso de Chico à pátria, conversando com Toquinho, sugeriu que lhe fizessem uma visita, pois "o rapaz estando muito deprimido por não ter temas novos, ficará mais deprimido ao escutar as nossas músicas novas". O tiro saiu pela culatra, porque Chico cantou novas poesias, entre as quais o tema inicial do concerto. Vinicius, ouvindo o poema, sugeriu acrescentar um pequeno verso que, posteriormente, na sessão de gravação do LP «Construção», meia frase desse verso foi censurada pelos representantes do regime.

       A propósito de Vinicius, em 1977, juntamente com Tom Jobim e Miúcha, dão espectáculos no Canecão, mítica sala do Rio de Janeiro, durante oito meses ao invés do período de dois meses registado em contrato. Toquinho revelou um episódio conservado em segredo, envolvendo Vinicius e o seu parente António Maia (locutor desportivo, jornalista, cronista, poeta e compositor). Ambos, medrosos por viajar de avião, porquanto, entre vários argumentos, prevalecia o facto que "em caso de avaria durante o voo, as oficinas são na terra e não lá em cima…", num dia de céu cor de chumbo e a voz colérica dos trovões, António, apavorado pela turbulência sentida nos momentos iniciais do voo, não conseguia olhar para ninguém. Passado esse padecimento, observou a periferia humana, detectando que no lugar ao seu lado, uma linda mulher lia um livro do seu familiar. "Conhece o autor do livro?", inquiriu sem resistir à sua beleza; a resposta foi "não". Confiante que conseguiria despertar a sua atenção, apresentou-se como Vinicius de Moraes, declamando alguns poemas. Espantada, apresentou pedido de desculpa pela forma fria como respondeu. Envolvidos em diálogo, ela revela o hotel onde se alojará; sem hesitar, embora não fosse para a mesma unidade hoteleira, afirma que também ficará nesse hotel. No dia em que António voltou a encontrar-se com Vinicius, contou-lhe que destemido enfrentou o temporal durante a viagem, relatando que se fez passar por ele para usufruir da companhia daquela "deusa com a qual saiu para almoçar, jantar e…" Na manhã seguinte, no meio de divertida conversa, ela disse:
      - "Tenho uma pequena e má notícia para lhe dar: de madrugada, você ficou sem tusa."

       Toquinho apresentou uma selecção de peças de sua autoria e de outros compositores, totalizando dezassete temas. "Quando o autor faz uma canção, ele quer que seja intemporal. A música tem 53 anos, chama-se «Que maravilha»; apliquei um pouco de Botox como tratamento estético", refere. Com Betinho Mateus (membro do grupo Luso Baião), residente em Portugal à 17 anos, cantou «Dois céus», anunciando paisagens cariocas e de Lisboa. Quando entoou «Aquarela», "canção que as crianças adoptaram para elas e para o seu mundo", além do público apreciar o rápido e doce saxofone-alto de Naillor Proveta e a voz de Camilla Faustino, que o acompanha há três anos, o nevoeiro existente sobre a minha memória, dissipou-se, avistando a primeira vez que ouvi essa canção, no programa «TNT- Todos No Top», apresentado por Jorge Pego, na Frequência Modular na saudosa Rádio Comercial em 1983.

      De Vinicius, também cantou «Saudades do Brasil em Portugal» (fado muito mal gravado ouvido numa cassete), «Tarde em Itapoã» num surpreendente ritmo firmo e vivaz, adornado pelo clarinete de Proveta, preenchendo o encore com «Eu sei que te vou amar» (tema ousado para o autor que casou nove vezes).

      "Por causa de João Gilberto, fantástico cidadão brasileiro, criador da atmosfera musical da bossa nova e transformador da música brasileira, comecei a aprender a tocar violão", informa Toquinho antes de interpretar «Chega de saudade», de 1958. "Baden Powell foi outra individualidade que transformou a música feita na banda de lá do Atlântico, por ocasião em que a bossa nova era rotulada de elitista. Powell e Paulinho Nogueira são amigos e fantasmas que pairam no meu violão, com os quais ainda aprendo a tocar ao ouvir os seus discos". Aliás, de Powell, "apaixonado pelo folclore da Bahia", tocou o instrumental «Berimbau», sobressaltando estreita intimidade com o braço da guitarra e dominando completamente as técnicas com a mão direita, alimentando a criatividade nos instrumentais executados.

      Intitulando o concerto de "bate-papo musical sem vestígios de sacrifício", dessa forma Toquinho manteve ambiência calorosa com o público, sendo notória a apreciação mútua e autêntica, madura, leal e de uma notável luminosa simpatia. Apesar das referências efectuadas pelo músico paulistano, Toquinho representa uma estética da arte musical do Brasil.

Palavras para quê....mais uma excelente reportagem do amigo Fantasma sempre com a capacidade de nos transportar para o momento e nos enriquecer com o seu conhecimento musical ,assim se prosasse noutros
locais encarregues de nos informar de eventos e factos deste mundo em que vivemos.

Bravo!!

É sempre um gosto poder ler sobre eventos desta tão bela forma de Arte que é a Música, mais ainda quando os textos são capazes de dignificar e elevar - como é o caso.